terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

A vida depois da vida

Revista Veja 15/02/2012


Quando o pastor batista Don Pipper dirigia seu Ford vermelho sobre a ponte, a carreta pegou seu carro em cheio. O volante esmagou o seu peito, o resto desabou, o painel caiu-lhe sobre as pernas. Havia ferro retorcido, estilhaços de vidro e sangue por todos os lados. Os para-médicos chegaram logo, tomaram o seu pulso, mas não havia mais o que fazer, além de cobrir o corpo sem vida com uma lona. Cerca de uma hora e meia depois, quando alguém rezara fervorosamente ao lado do seu corpo ainda entalado nas ferragens do carro, Don Pepper simplesmente voltou à vida . Após 120 dias no hospital, 34 cirurgias e treze meses de cama em casa ele contou sua experiência num best-seller que já vendeu mais de 4 milhões de exemplares. Nos noventa  minutos que foi dado como morto, Pipper garante que estava no céu. Uma enlevada multidão acolheu-o diante de um portão cintilante com sorriso e palmas e beijos e abraços. Havia luzes radiantes e belíssimos sons celestiais, inclusive o rufar de asas dos anjos. Sim, Pepe garante que há um lugar para onde vamos depois da morte. Que a morte não é o fim.

Nos 50.000 anos da história humana, jamais surgiu uma prova cabal de que a vida não termina com a  morte. No entanto, há 50.000 anos a humanidade, em qualquer tempo ou cultura, acredita que a morte não é o fim da linha. Uma pesquisa mostra que mais de 70% dos americanos, em todas as faixas etárias, acreditam na vida após a morte. Um levantamento realizado em 23 países (o Brasil entre eles) identificou que 51% acreditam em alguma forma de vida pós-morte -  vida no paraíso ou no inferno, através da reencarnação ou como energia cósmica. No caso dos brasileiros, o porcentual de crédulos chega a 72%. A idéia de que os mortos tem uma segunda vida perdeu aceitação generalizada, mas ainda permeia o imaginário ocidental; ela está nas conversas, piadas, filmes, livros. E enorme o sucesso de seriados de vampiro, confirmando o  interesse num outro universo. Entre ficção e não-ficção, o site da Amazon oferece mais de 3.000 títulos em inglês sobre a vida do outro lado. O tema está em todos os lugares, em especial nas igrejas e templos.  “O Ocidente vive uma fascinação com avida depois da morte como não se via desde o auge do espiritismo, entre 1850 e 1870”, escreveu o holandês Jan N. Bremmer, autor de provocativo livro sobre as ideias de além-túmulo.

Dois fatores contribuem para a crescente popularidade do assunto. O terrorismo islâmico é um deles. A principal motivação dos extremistas muçulmanos para sacrificar a vida em explosões suicidas é a recompensa das 72 virgens no paraíso. Os atentados de 2001 mudaram a visão americana do mundo e da atualidade recolocaram a religião no centro da discussão pública. Em resposta ao terror islâmico, o fundamentalismo cristão também reaviveu, para seu próprio conforto, a consoladora "ideia" de que os mortos renascem no além. O outro fator está nas proliferação de pesquisas. A ciência nunca se interessou tanto na investigação da vida após-morte como atualmente. As chamadas “experiências de quase morte”, em que uma pessoa clinicamente morta revive, como ocorreu com o pastor Piper, são o alvo dos cientistas.  Antes, esses estudos estavam confinados aos raros departarnentos de parapsicologia nas universidades americanas. Agora, estão nas áreas de neurologia, psicologia e genética. Um dos aspectos de estudo é a intrigante persistência da ideia de vida pós-morte, que resiste aos séculos, as culturas, a tecnologia.  




O biólogo Dean-Hamer, integrante da estirpe de cientistas que escrevem livros e viram pop stars,  afirma que temos uma predisposição genética para  a espiritualidade. Ao pesquisar 200 pessoas, incluindo gêmeos, Hamer descobriu uma coincidência:   os que tinham sentimentos religiosos compartilhavam  um gene, o VMAT2,  responsável pelo e controle do fluxo das substâncias químicas que guiam o humor. Em o “Gene de Deus”, o biólogo é categôrico: “A espiritualidade é uma das nossas heranças mais básicas. É um instinto”. O traço genético não seria um efeito colateral da nossa história evolucionária, mas uma vantagem adaptativa. A espiritualidade, segundo Hamer, nos dotou de um otimismo inato que, no plano psicológico, nos conforta e nos estimula a procriar, ajudando a preservar a espécie. O neurocientista Andrew Newberg, da Universidade Thomas Jefferson, monitorou o cérebro de freiras e monges enquanto rezavam ou meditavam e identificou o circuito neural que é ativado pela imersão religiosa. A exemplo do Hamer, a pesquisa de Newberg sugere que a espiritualidade - fonte mais fértil das crenças no pós-vida - pode ter uma base biológica.

O psicólogo canadense Bruce Hood, da Universidade de Bristol, acredita que chegamos ao mundo com uma inclinaçäo não para a espiritualidade, mas para o pensamento sobrenatural. “Deus pode requerer a crença no sobrenatural, mas as crenças no sobrenatural não requerem Deus”, diz.  De acordo com Hood, temos um “supersentido”, um instinto para acreditar em coisas invisíveis, imensuráveis, desconhecidas - como a existência de uma entidade divina, poderes da cartomante, a coluna de horóscopo dos jomais, a telepatia, a vida depois da morte. Por isso, as crianças têm tamanha facilidade para acreditar em Super-Homem, bruxas voadoras ou sapos falantes, que tão claramente violam as leis naturais. Dependendo do ambiente em que crescemos - se mais ou menos místico -, o pensamento mágico vai sendo substituído por outras crenças ou pelo raciocínio científico. Em Supersentido: por que Acreditamos no Inacreditável, Hood ó generoso com os que tem fé, mas chega a uma conclusão severa: “O pensamento sobrenatural no adulto é o resíduo dos erros conceituais da infância que não foram devidamente eliminados”.

Ainda há controvérsias sobre se somos programados para a vida espiritual ou não, mas a ciência chegou a um consenso: o cérebro foi desenhado pelas forças evolutivas para extrair sentido do mundo que nos rodeia. Ele está permanentemente procurando padrões, modelos, estruturas, tentando encontrar ordem e lógica em tudo o que nos cerca. E esse imperativo biológico que nos leva a enxergar figuras nas nuvens. Se ouvimos palavras soltas, sem sentido, como “narina raspar às vezes é linda”, o cérebro logo organiza esses sons em algo inteligível, como “Marina Gaspar Menezes é linda”. Em certo sentido, lidamos com um paradoxo fascinante: o cérebro é programado para ver o mundo como ele não é - ordenado e lógico.

O universo é um caos, com escuridões intermináveis, explosões estelares, corpos celestes se chocando em velocidades alucinantes. Tudo é aleatório e casual. Mas o cérebro, por força de sua natureza, precisa encontrar uma ordem. Nessa tarefa, recorre à ciência ou ao sobrenatural, e pode ser facilmente enganado. Uma experiência recente de neurologistas do Instituto Karolinska, em Estocohno, mostrou que o cérebro pode ser rapidamente iludido de que temos três mãos. No início, ele entra em conflito. Em seguida, absorve a informação e passa a sentir como se a existência das três mãos fosse fisicamente real.

O cérebro humano é uma maquina excepcionalmente potente e complexa mas, ao contrário do senso comum, não é perfeita, muito menos moderna. Na verdade, seu desenho é tão antigo que está em descompasso com o progresso tecnológico que atingimos. Hoje, é desnecessário um cérebro que se sente mortalmente ameaçado por cobras ou aranhas. Isso era providencial no tempo das cavernas. Agora, seria mais útil um cérebro aterrorizado, digamos, com o choque elétrico. Afinal, em casa corremos mais risco de levar um choque do que uma picada de cobra. Mas o cérebro não teve tempo em termos evolucionários para se adaptar a modernidade. David Lewis-Williams, em seu The Mind in the Cave (A Mente nas Cavernas), resumiu com brilhantismo essa dicotomia: “A essência do ser humano e uma desconfortável dualidade entre a tecnologia “racional” e a crença irracional. Ainda somos uma espécie em transição”. Por isso, somos capazes, a um só tempo, de ir a Lua e crer em fantasmas, ou usar a mais formidável tecnologia para falar de universos paralelos em filmes fascinantes como Matrix, a trilogia O Senhor das Anéis ou A Origem, estrelado por Leonardo Di Caprio. O radiologista e oncologista Jeffrey Long escreveu Evidence of the Afierlife (Evidências da Vida Após a Morte), catalogando a historia de 1600 pessoas que passaram por uma “experiência de quase morte”, que os estudiosos conhecem pela sigla EQM. Long tem um site com 2.500 depoimentos e 40.000 visitantes por mês. Os estudiosos de EQM têm associação internacional, publicam um jornal trimestral e organizaram um congresso internacional na França em 2006. Os estudos mostram que os ressuscitados tem relatos semelhantes. Contam que flutuaram sobre o próprio corpo, entraram num túnel, viram a vida inteira passar diante dos olhos e encontraram parentes e amigos mortos. (Consta que Elizabeth Taylor, numa EQM, encontrou-se com Mike Todd. “Ele me deu um empurrão e me jogou de volta para a vida”, disse ela. Mas não esclareceu se o empurrão veio em benefício dele ou dela.)

A neurologia já explicou boa parte do fenômeno das EQMs. O estímulo de uma região ido cerebro chamada giro angular direito altera a percepção espacial, e com isso temos a sensação de abandonar o prório corpo. O giro angular esquerdo é a região que, estimulada por impulsos elétricos, produz a visão de vultos. A falta de oxigênio, comum nas paradas cardíacas, afeta primeiro as células da visão periférica, e a visão central passa a predominar - disso resulta a imagem do túnel. Como se sabe desde a era do psicodelismo dos anos 60 e do festival de Woodstock, as drogas produzem todo tipo de alucinação. O psiquiatra inglês Karl Jausen fez entrevistas com usuários de drogas e recolheu depoimentos semelhantes aos relatos de quem viveu uma EQM. 0 cinema diante dos olhos resulta da hiperatividade de algumas áreas do cérebro que, empenhadas em compensar a falta de oxigênio, acabam produzindo uma alucinação que se parece com uma retropectiva da vida.

O neurologista Kevin Nelson, liderando uma equipe da Universidade de Kentucky, descobriu recentemente que a expêriencia de ver-se fora do corpo fisico pode ser produto de um transtomo do sono profundo. Normalmente, passamos do sono profundo para o estado de vigília sem escalas. Mas algumas pessoas tem um distúrbio em que os dois estados de consciência - adormecido e acordado - se confundem. Numa simplificação, é como se a mente acordasse antes do corpo, que segue paralisado em sono profundo, enquanto a mente faz um voo alucinatório fora do corpo. Como o transtorno, é vinculado ao tronco cerebral, isso pode ocorrer mesmo que a parte superior do cérebro já tenha morrido.

 Tal como a concebemos hoje, a ideia da vida após a morte é um legado do cristianismo, mas elevou séculos até se consolidar num conjunto doutrinário. A própria ideia de purgatório - aquele estágio intermediário onde as almas são julgadas,  - ou purgadas - só ganhou clareza no século XII  e atingiu seu apogeu com a Divina Comédia, de Dante Alighieri. Admirador de Dante, Michelangelo se inspirou na Divina Comédia para pintar o teto da Capela Sistina. Botticelli fez  de desenhos a partir dos versos em terza rima do poeta. A influência de Dante, incontrastável no mundo ocidental, atravessou os séculos e chegou até nos na literatura de James Joyce, na dramaturgia de Samuel Beckett, na poesia de Seamus Heaney, o Nobel de 1995.

As religiões são grandes criadoras da idéia do paraíso. “As religiões acreditam na vida após a morte porque, para elas, o mundo foi feito por um Deus que não pretende ver Sua criação reduzida a nada, diz a professora Carol Zaleski, do Smith College, aclamada autora sobre o assunto. O estudo das visões do paraíso elaboradas pelas religiões equivale a uma viagem pelo mundo das circunstâncias terrenas. As tribos que escreveram a Bíblia e o Corão habitavam uma região desértica, e não por acaso o paraiso em fartura de rios - de leite, mel, vinho e agua mesmo. No Egito antigo, só depois que o paraiso deixou de ser privilégio dos faraós é que se criou-se um tribunal dos mortos, que são julgados na presenga da bela Maat, a deusa da verdade, da ordem e da justiça, aquela que tem uma longa pena de avestruz na cabeça cuja, ponta graciosamente verga sob o próprio peso. Na Judeia, o céu deixou de ser a morada exclusiva de Deus, e passou a ser destino dos mortos, quando se espalhou furiosamente  o tremor de que o mundo ia acabar.  Nos EUA,  a ideia de paraiso chegou com os primeiros puritanos. O céu era a austero.O celebrado evangelista americano Billy Graham, 93 anos, hoje o define como o lugar onde “vamos direigir sobre ruas de ouro num Cadillac amarelo conversível".

Somos a única espécie com consciência da própria existência, mas o preço  que pagamos por essa dádiva é a ansiedade de nos sabermos mortais - a morte, esse mistério que Hamlet chamoo de “país desconhecido”, de onde ninguém jamais voltou. Talvez a ansiedade explique por que o além é  paradisíaco. O psicólogo Jeff  Greenberg, da Universidade de Arizona criou a teoria Segundo a - qual a ideia da imortalidade ameniza essa ansiedade que, do contrário, sem atenuantes, seria incapacitante. Batizada de “teoria do manejo do terror”, sua tese sugere que nossos valores e crenças foram desenvolvidos para nos proteger do medo da morte - de  modo que, diante da ameaça da morte, tendemos a nos apegar a  eles. Num teste, Greenberge colegas pediram que 22 juizes municipais que definissem o valor da fiança num caso banal (e fictício) de prostituição. Antes, convidaram metade dos juizes a responder um questionarío cujo objetivo era so fazê-los lembrar da inevitabilidade da própria morte. A outra metade não recebendo questionário. A diferença nos valores da é espantosa. Os juízes expostos a lembrança da morte estipularam a fiança de 450 dólares. Ou seja: quando lembrados que são mortos, juízes foram muito mais severos com uma conduta - a prostituição - ofensiva à sua moral. Em outras palavras, nossos valores e crenças são uma, promessa de imortalidade.  A ironia final é que a imortalidade, em vez de nos preservar para a eternidade, nos transformaria em algo que nunca fomos. O professor de filosofia da Universidade de Cambridge Stephen Cave lançará  em breve um livro sobre imortalidade no qual defende o argumento de que, se um milagre nos desse vida eterna, a civilização, tal qual a conhecemos, estaria irremediavelmente destruída. “Grande parte do que fazemos e com base na esperança de vencer a morte. O que faríamos se não fosse mais preciso rezar, criar arte nem fazer pesquisas científicas'?”, diz Cave. “Além disso, o valor de uma coisa é definido por sua escassez. Valorizamos o nosso tempo porque ele e limitado.” Sem ter o que fazer, mas com  tempo infinito  fazê-lo, seríamos outros. Cave conclui: "As consequências da eternidade seriam ruins para o individuo e um desastre para a civilização”. Mas nada disso matam a esperança - a última a morrer, afinal - de que a morte seja, quem sabe, apenas um novo começo disfarçado.

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